17/10/2009

Aos mestres armeiros II

Caríssimos,
Lembro-me bem, agora, da primeira arma que pedi que consertassem. Calibre baixo, o revólver era quase artesanal. Era um problema simples: um tambor teimoso que insistia em não girar. Resultado do uso de munição barata. Naquela época, lembro-me, tive minha primeira lição de luta: gaste o que puder - e, às vezes, o que não puder-, em boa munição. Faz muita diferença e, ao fim e ao cabo, diz muito sobre quem você é. Respeitam-na por isso. Faça sacrifícios, se preciso, mas compre boa munição.
Reflito sobre isso quando subo ao ringue. (Sim, continuo a me aventurar com os punhos.) No que eu poderia investir, agora que não uso mais as armas que tinha? Devo passar horas exercitando os músculos, visto que eles, agora, são minha 'munição'? Talvez. De qualquer forma, já me exercito bastante e meus músculos têm a força necessária para derrubar meus adversários. Ainda assim, vou mal nesse novo caminho. Ontem, pela quinta vez, perdi no primeiro round. Perdi desgraçadamente. Fui alvo de deboche. Vaiaram-me. Recordo-me, com certa melancolia, que os instantes entre o soco certeiro de minha adversária e a pancada do chão contra minha cara foram muito longos. Pensei, nesses momentos, em todos os meus erros. Analisei as estratégias de combate, lembrei-me de como havia estudado minha oponente, semanas antes da luta - os diretos de esquerda, seu forte, me encantavam no vídeo, quando sua luva de um vermelho cintilante atingia o rosto das adversárias e arrancava delas o sangue que se espalhava pela superfície clara do ringue - , pensei no intenso trabalho físico, que me fortalecia, mês a mês - sim, eu tinha agora o corpo mais forte do que nunca - , considerei minhas falhas e, meus caros mestres, juro, JURO!, não encontrei nada digno de reprovação... nada que me rendesse aquele soco certeiro no nariz, e o contato do chão frio do ringue com a parte direita da minha cara.
Sigo me deformando. Acho mesmo que as pancadas vão acabar por me transformar em outra pessoa, irreconhecível até mesmo para os parentes mais próximos.
Com amor,
Ana

13/08/2009

queria perder peso, foi a um nutricionista:
não pode lactose,
não pode glúten,
não pode farinha,
açúcar não pode,
sal também não,
café nem pensar,
chocolate é pecado.
Deu certo: emagreceu de tristeza.

05/03/2009

"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?"
F. Nietzsche

A dor só sangra o coração que bate. O sofrimento só atinge quem tem ressonâncias humanas. A saudade só vem quando a vida é generosa. O silêncio só tem valor para os falantes. O amor só premia os ousados.
A ordem não é fim nem tristeza. É apenas a paz de saber-se caos.